Não pude deixar de notar a ironia do seder ser fiscalizado por um porco, animal cuja carne é terminantemente proibida aos judeus. Meu erro foi fazê-lo justamente durante o shabbat, o que me rendeu uma multa instantânea. Em todos shabbats da época em que morei lá, fui punido pela intolerante política anti-humor de Arthur, e o porquinho era meu assunto predileto e irresistível. Perguntei se ele era circuncidado, sugeri que fosse retirado da cozinha para não contaminar a comida e outras tantos chistes. Me custou uma fortuna, o maldito. Nesta última visita, não me contive e perguntei se a gigantesca televisão de plasma na sala tinha sido comprada com os dólares dos meus inúmeros depósitos compulsórios. Arthur, num arroubo de generosidade, se fez de desentendido e não tarifou o gracejo. Mas seu olhar fulminante e sorriso com os dentes rilhando garantiam que na próxima feita não seria tão magnânimo.

Antes do jantar, como já disse, fomos à sinagoga. A religiosidade do americano se contrapõe à sua fama de individualista. Crêr em Deus é sim uma coisa pessoal, particular. Mas religião é coisa comunitária. Precisa-se de um grupo, em geral dividido entre membros do clero e fiéis. No caso judaico, a figura do rabino não é exatamente eclesiástica, não detém canal direto com Deus nem os direitos exclusivos de comandar as orações, aplicar penitências e vender indulgências. Seria mais um juiz: seu papel principal é interpretar a Torah – a Bíblia e o Talmud – livro de leis e assim mediar os eventuais conflitos na comunidade.
O rabino de Portland se comportava mais como membro do legislativo do que do judiciário. Parecia deputado, ou candidato à tal, pelo PCdoB. Ou melhor: pelo PSOL. Como se estivesse em praça pública, sobre um caixote de laranja e diante da massa, bradou contra os descaminhos da política americana, a corrupção e o jogo de interesses. Não falou mal do capitalismo, é claro, afinal estávamos nos EUA e mais, numa sinagoga. Mas conclamou todos a terem consciência nos atos, ética nas relações e postura mais combativa. Depois do sermão fomos apresentados. Ao me saber brasileiro, mudou de legenda e converteu-se ao PV. Num clima paz e amor, falou de sua adoração por Caetano Veloso:
-“É mesmo?!” – disse, surpreso pela escolha de um artista além do samba e da bossa-nova – “Alguma música em especial?”
- “Ah, minha preferida é Leãozinho!” e cantarolou um pedaço, comprovando sua propriedade sobre o tema. PV, sem dúvida.
Lembrei-me de Don, o missionário de Lancaster que gostava de Raul Seixas e cantava “quem não tem colírio, usa óculos escuros” sem saber que Raulzito falava de coisas do Capeta. Não desiludi Don, mas achei que o rabino merecia a verdade: - “Não sei se você sabe mas ele compôs essa música para um sujeito, o Dadi, seu contra-baixista na época. Quer dizer...”
- “Claro, eu sei. É uma música com conotação homoerótica” respondeu com um sorriso condescendente.
Fiquei com cara de tacho. Para contornar a situação e apagar minha imagem de preconceituoso me ofereci para copiar um CD do bom baiano, que trouxera comigo na viagem.
- “Obrigado” - recusou - “Isso é pirataria, não posso aceitar.” Desejou-me boa viagem e foi falar com seu rebanho, deixando-me ali, reduzido à minha insignificância, me sentindo Democratas, ou pior, Arena dos pés à cabeça.