segunda-feira, 13 de abril de 2009

In God We Trust

Ainda estava claro quando nos sentamos à mesa, na América janta-se com as galinhas. Arthur, o tio, pediu silêncio. Quando Arthur pede alguma coisa, sempre o faz num tom impaciente, como se estivesse repetindo pela enésima vez; uma vez atendido, seu obrigado vem acompanhado de um suspiro profundo e um sorriso esgarçado que diz “já não era sem tempo”. Silêncio feito, comandou uma prece.


No Brasil, não se reza mais às refeições. Se rezam, o fazem escondido das visitas. Não lembro de ter frequentado mais que duas ou três mesas onde se agradece à Deus pelo pão de cada dia. A impressão é que se tornou coisa do passado, démode. Nos EUA, por outro lado, os dois lares que visitamos eram ambos desavergonhadamente pios. O primeiro, vá lá, casa de missionários. Mas os Waldman são um casal laico, sem grandes aspirações religiosas. E não estão sozinhos: pesquisa recente constatou que 64% dos americanos agradecem ao Altíssimo pelo prato de comida, mesmo que feito pela Phyllis. 70% acreditam que o Paraíso existe e 73% crêem em milagres. Em contrapartida apenas 34% acreditam em extra-terrestres e 25% em astrologia. Deus ainda é pop.

Com o Senhor devidamente reverenciado, pudemos nos engajar em assuntos mundanos. Diante de entes queridos poderia tocar nos pontos sensíveis sem precisar pisar em ovos. Primeiro foi a guerra no Iraque. Arthur, representando o grande rebanho americano, a “maioria silenciosa”, já não concordava mais com a guerra, mas ostentava no carro um adesivo de apoio às tropas. “Queremos que nosso garotos façam um bom trabalho e voltem seguros para casa” repetia a cantilhena nacional. Os americanos vivem um dilema ético: o fim de Saddam Houssein satisfez sua necessidade íntima de fazer justiça e punir malfeitores, onde quer que estejam. Mas o pudor diante dos estragos da guerra os impede de usar sua avassaladora superioridade bélica e resolver o conflito de uma vez. Querem fazer o omelete sem quebrar muitos ovos. Não funciona. Como dizia o Duke de Wellington, grandes países não podem se dar o luxo de fazer pequenas guerras. O Vietnã não lhe deixa mentir.


Segundo assunto: aquecimento global. Arthur - um sujeito esclarecido, médico e ávido consumidor de notícias – acha que há um grande exagero na visão apocalíptica em voga. Crê na existência de lobbies que defendem interesses particulares, e não gerais. Ainda mais quando Al Gore, não só um político mas potencial candidato à presidência, empunha a bandeira. Há algo de podre no ar, e não é só o próprio...Se as mudanças climáticas lhes parecem exagero, ainda mais complicado é criticar sua fonte, a sociedade do consumo e do desperdício. A mente do americano funciona sob a lei dos mercado: se algo está escasseando na natureza vai aumentar de preço. Simples assim. Então por que se preocupar com as luzes acesas o dia inteiro e a água limpa jorrando impunemente das torneiras, se tudo custa pouco e nunca falta? Por que deixar de ter carros poderosos e beberrões, se eles são baratos, se a gasolina é barata, se até mendigos conseguem ter seu “possante”? O que atrapalha o americano é seu próprio sucesso, sua própria riqueza e convenhamos: difícil fazer auto-crítica um povo que, em dois séculos, passou de colônia para maior e mais abastada nação do planeta. A última geração que passou por dificuldades foi a da Grande Depressão, nos anos 30, e infelizmente não sobrou ninguém para alertar aos descendentes que o que vem fácil, vai fácil, mas a recíproca não é verdadeira.

Quanto à refeição, não sei se foi o vinho que enterneceu minhas papilas gustativas ou se foram os bandejões e quilos da vida que endureceram meu paladar. Só sei que o jantar estava honesto. Confesso que até cobiçei mais uma porção do filé de frango ao molho desconhecido, mas desisiti. Seguro morreu de velho. Para fechar com chave de ouro, Phyllis providenciou um vistoso bolo de chocolate. Orgulhosa contou ter procurado a tradução de "Welcome" e, em nossa homenagem, escreveu “Dar as Boas Vindas” sobre a cobertura de marshmallow. Quando cheguei lá em 1985, perto do meu aniversário, também fui recebido com um bolo, daquela vez inscrito “Feliz Data de Nascimento”. Na minha próxima visita aos Waldmans, já sei que presente vou levar.

2 comentários:

Unknown disse...

Ricardo,
Seria muito interessante reescrever esse capítulo agora que a crise está pegando forte! Será que os Waldman ainda acreditam que o mercado resolve todos os problemas cotidianos do americano via ajuste de preços?
Abrraço

Ricardog disse...

Pudera eu refazer a viagem inteira e escrever dois livros - ou blogs, seja lá no que isso vai dar - simultâneos.

Quanto aos Waldman, tenho certeza que o que lhes vale é a máxima "O bolso é o orgão mais sensível do ser humano".

Saludos rubro-negros!