No Brasil, não se reza mais às refeições. Se rezam, o fazem escondido das visitas. Não lembro de ter frequentado mais que duas ou três mesas onde se agradece à Deus pelo pão de cada dia. A impressão é que se tornou coisa do passado, démode. Nos EUA, por outro lado, os dois lares que visitamos eram ambos desavergonhadamente pios. O primeiro, vá lá, casa de missionários. Mas os Waldman são um casal laico, sem grandes aspirações religiosas. E não estão sozinhos: pesquisa recente constatou que 64% dos americanos agradecem ao Altíssimo pelo prato de comida, mesmo que feito pela Phyllis. 70% acreditam que o Paraíso existe e 73% crêem em milagres. Em contrapartida apenas 34% acreditam em extra-terrestres e 25% em astrologia. Deus ainda é pop.
Com o Senhor devidamente reverenciado, pudemos nos engajar em assuntos mundanos. Diante de entes queridos poderia tocar nos pontos sensíveis sem precisar pisar em ovos. Primeiro foi a guerra no Iraque. Arthur, representando o grande rebanho americano, a “maioria silenciosa”, já não concordava mais com a guerra, mas ostentava no carro um adesivo de apoio às tropas. “Queremos que nosso garotos façam um bom trabalho e voltem seguros para casa” repetia a cantilhena nacional. Os americanos vivem um dilema ético: o fim de Saddam Houssein satisfez sua necessidade íntima de fazer justiça e punir malfeitores, onde quer que estejam. Mas o pudor diante dos estragos da guerra os impede de usar sua avassaladora superioridade bélica e resolver o conflito de uma vez. Querem fazer o omelete sem quebrar muitos ovos. Não funciona. Como dizia o Duke de Wellington, grandes países não podem se dar o luxo de fazer pequenas guerras. O Vietnã não lhe deixa mentir.
Segundo assunto: aquecimento global. Arthur - um sujeito esclarecido, médico e ávido consumidor de notícias – acha que há um grande exagero na visão apocalíptica em voga. Crê na existência de lobbies que defendem interesses particulares, e não gerais. Ainda mais quando Al Gore, não só um político mas potencial candidato à presidência, empunha a bandeira. Há algo de podre no ar, e não é só o próprio...Se as mudanças climáticas lhes parecem exagero, ainda mais complicado é criticar sua fonte, a sociedade do consumo e do desperdício. A mente do americano funciona sob a lei dos mercado: se algo está escasseando na natureza vai aumentar de preço. Simples assim. Então por que se preocupar com as luzes acesas o dia inteiro e a água limpa jorrando impunemente das torneiras, se tudo custa pouco e nunca falta? Por que deixar de ter carros poderosos e beberrões, se eles são baratos, se a gasolina é barata, se até mendigos conseguem ter seu “possante”? O que atrapalha o americano é seu próprio sucesso, sua própria riqueza e convenhamos: difícil fazer auto-crítica um povo que, em dois séculos, passou de colônia para maior e mais abastada nação do planeta. A última geração que passou por dificuldades foi a da Grande Depressão, nos anos 30, e infelizmente não sobrou ninguém para alertar aos descendentes que o que vem fácil, vai fácil, mas a recíproca não é verdadeira.
2 comentários:
Ricardo,
Seria muito interessante reescrever esse capítulo agora que a crise está pegando forte! Será que os Waldman ainda acreditam que o mercado resolve todos os problemas cotidianos do americano via ajuste de preços?
Abrraço
Pudera eu refazer a viagem inteira e escrever dois livros - ou blogs, seja lá no que isso vai dar - simultâneos.
Quanto aos Waldman, tenho certeza que o que lhes vale é a máxima "O bolso é o orgão mais sensível do ser humano".
Saludos rubro-negros!
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