terça-feira, 7 de julho de 2009

Louco por ti America

Já que falei de Caetano Veloso, tem uma frase sua que adoro: “de perto ninguém é normal”. Parece aquele ditado, “de médico e louco todo mundo tem um pouco”, só que tem mais precisão. O ditado diz que a loucura está lá, mas não diz onde. Já o bardo baiano dá o caminho das pedras: para descobrir a loucura alheia – ou mesmo a sua própria, se lhe convém – tem que olhar de perto.

Claro que existem loucuras óbvias, visíveis ao olho nu. Um primo meu, quando tinha seus doze, treze anos, se apaixonou pela Bulgária. Assim, sem mais nem menos. Uma noite foi dormir e quando acordou amava a Bulgária desde sempre. Isso quando ela ainda era uma pobre república socialista. Morador de Copacabana, andava por aí exaltando o Danúbio e sonhando com o verão nas praias do Mar Negro. Passou a colecionar moedas, selos, estudar a história e cultivar amigos búlgaros por correspondência. Na última vez que nos falamos antes ele ainda suspirava, nostálgico e saudoso de uma Bulgária nunca visitada.

Mas eu queria falar dos malucos discretos. Mais especificamente de Cássia, minha patrôa. Quem a conhece nem cogita uma anormalidade. Colegas de escola, do trabalho, até mesmo parentes de segundo grau só conhecem a Cássia ponderada, lúcida, de lida fácil, cheia de predicados. De perto, no entanto, descobre-se uma obsessão em flor: a meteorologia. O tempo é a primeira coisa que ela pensa pela manhã e a última antes de dormir. Quando acessa a Internet, a primeira coisa que faz é entrar nos sítios do Climatempo e Weather Channel. Um deles é, na verdade, a página inicial de seu navegador. Na rua torce o pescoço para ver todos os termômetros e briga comigo se interrompo quando a moça do tempo está na TV. Assustador.

Para tarados do gênero, os Estados unidos são um prato cheio. Lá a natureza exibe todo seu arsenal de peripécias. Tornados, furacões e nevascas se abatem sobre o país com frequência e fúria, destruindo cidades, matando gente, arruinando economias. Até mesmo tempestades de poeira já causaram catástrofes homéricas. Talvez por isso o assunto meteorologia lhes seja tão caro. As informações são fartas, disponíveis e precisas. Americanos são bons de previsão, garante Cássia. Se ela diz, para mim é ponto pacífico.

De acordo com a previsão do tempo, o final do sábado seria de nevasca forte no norte da Nova Inglaterra. Obviamente é para lá que fomos! Partimos na manhã do próprio sábado, sob promessa de fortes emoções. Os Waldmans tentavam nos demover da idéia, preocupados com minha inexperiência em dirigir sob condições hostis. Tentei explicar para eles o que é a Régis Bittencourt, principalmente aquele trecho de serra, de pista única e neblina eterna. Eles insistiam que a neve é perigosa, traiçoeira, que sem correntes nos pneus eu estava implorando procurando encrenca. Eu retrucava com as crateras da BR-116, a falta de sinalização e os caminhoneiros movidos à rebite. Deram-se por vencidos.

Pegamos a estrada como crianças em dia de excursão, excitados com tudo. Até encher o tanque era digno de nota. Cruzamos Connecticut e paramos em Springfield – a de Massachussets – para almoçar, escoltados pelo sol e debaixo de temperaturas amenas. Quando entrávamos em Vermont, a temperatura caiu drasticamente e achamos por bem colocar os casacos quando...surpresa! Não estavam lá. Esquecemos nossas únicas roupas pesadas em Portland. Assim como virava o tempo lá fora, nossa euforia se transformava numa depressão cava e profunda. Se voltássemos a nevasca nos alcançaria e ficaríamos presos nos Waldman por três dias, isto é, nove refeições sob a batuta de Phyllis E se aquele jantar houvesse sido apenas um lapso de virtuosismo?. Preferi seguir viagem. Compraríamos novos casacos em algum shopping ou outlet que encontrássemos pelos caminho.

Ironia do destino, não há shopping centers em Vermont. Parece delírio dizer que nos EUA existe um lugar avesso aos grandes magazines, aos centros de compra, mas Vermont é assim, o anti-EUA. Seus políticos e seu povo não permitem a construção deste tipo de comércio e resistem bravamente às investidas das cadeias de lojas, sedentas por sua castidade comercial. Para se ter uma idéia, o estado foi o último do país a receber um Wal-Mart, isto depois de muito assédio e disputa política. Mesmo assim o megavarejista não pode construir uma de suas infames loja-caixote à beira da estrada, foi obrigado a ocupar um imóvel abandonado no decadente downtown Bennington. Vermont perdeu a virgindade sem perder a pose.

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Entre Leões e Porcos

Sexta é dia de shabbat. Bons judeus que são, os Waldman celebram a data comme il faut: param de trabalhar antes do anoitecer, vão à sinagoga e depois celebram o seder - jantar cerimonial - em casa. O seder de Arthur segue o padrão, exceto por uma peculiaridade: quem fizer piada tem que pagar uma multa. Multa mesmo, dinheiro, bufunfa, o vil metal. O infrator deve depositar um dólar no cofrinho que fica na cozinha. Com o tempo descobri que não precisa ser, necessariamente, uma piada picante. Basta um comentário jocoso para Arthur acionar o suíno arrecadador . Ah, esqueci de dizer: o cofre é um tradicional porquinho de porcelana.


Não pude deixar de notar a ironia do seder ser fiscalizado por um porco, animal cuja carne é terminantemente proibida aos judeus. Meu erro foi fazê-lo justamente durante o shabbat, o que me rendeu uma multa instantânea. Em todos shabbats da época em que morei lá, fui punido pela intolerante política anti-humor de Arthur, e o porquinho era meu assunto predileto e irresistível. Perguntei se ele era circuncidado, sugeri que fosse retirado da cozinha para não contaminar a comida e outras tantos chistes. Me custou uma fortuna, o maldito. Nesta última visita, não me contive e perguntei se a gigantesca televisão de plasma na sala tinha sido comprada com os dólares dos meus inúmeros depósitos compulsórios. Arthur, num arroubo de generosidade, se fez de desentendido e não tarifou o gracejo. Mas seu olhar fulminante e sorriso com os dentes rilhando garantiam que na próxima feita não seria tão magnânimo.




Antes do jantar, como já disse, fomos à sinagoga. A religiosidade do americano se contrapõe à sua fama de individualista. Crêr em Deus é sim uma coisa pessoal, particular. Mas religião é coisa comunitária. Precisa-se de um grupo, em geral dividido entre membros do clero e fiéis. No caso judaico, a figura do rabino não é exatamente eclesiástica, não detém canal direto com Deus nem os direitos exclusivos de comandar as orações, aplicar penitências e vender indulgências. Seria mais um juiz: seu papel principal é interpretar a Torah – a Bíblia e o Talmud – livro de leis e assim mediar os eventuais conflitos na comunidade.


O rabino de Portland se comportava mais como membro do legislativo do que do judiciário. Parecia deputado, ou candidato à tal, pelo PCdoB. Ou melhor: pelo PSOL. Como se estivesse em praça pública, sobre um caixote de laranja e diante da massa, bradou contra os descaminhos da política americana, a corrupção e o jogo de interesses. Não falou mal do capitalismo, é claro, afinal estávamos nos EUA e mais, numa sinagoga. Mas conclamou todos a terem consciência nos atos, ética nas relações e postura mais combativa. Depois do sermão fomos apresentados. Ao me saber brasileiro, mudou de legenda e converteu-se ao PV. Num clima paz e amor, falou de sua adoração por Caetano Veloso:


-“É mesmo?!” – disse, surpreso pela escolha de um artista além do samba e da bossa-nova – “Alguma música em especial?”
- “Ah, minha preferida é Leãozinho!” e cantarolou um pedaço, comprovando sua propriedade sobre o tema. PV, sem dúvida.


Lembrei-me de Don, o missionário de Lancaster que gostava de Raul Seixas e cantava “quem não tem colírio, usa óculos escuros” sem saber que Raulzito falava de coisas do Capeta. Não desiludi Don, mas achei que o rabino merecia a verdade: - “Não sei se você sabe mas ele compôs essa música para um sujeito, o Dadi, seu contra-baixista na época. Quer dizer...”


- “Claro, eu sei. É uma música com conotação homoerótica” respondeu com um sorriso condescendente.


Fiquei com cara de tacho. Para contornar a situação e apagar minha imagem de preconceituoso me ofereci para copiar um CD do bom baiano, que trouxera comigo na viagem.


- “Obrigado” - recusou - “Isso é pirataria, não posso aceitar.” Desejou-me boa viagem e foi falar com seu rebanho, deixando-me ali, reduzido à minha insignificância, me sentindo Democratas, ou pior, Arena dos pés à cabeça.

Ex-cola

Visitar o passado pode ser perigoso. É, como diria Nelson Rodrigues, uma janela para o infinito. Reencontrar uma antiga paixão de infância e descobrir que ficou gorda e feia, por exemplo, é uma catástrofe. Não há como dissociar a musa de outrora do bucho atual. Mata-se assim uma lembrança inestimável. Comigo aconteceu o contrário: reencontrei uma pequena que, na infância, quis ser minha namoradinha e foi sumariamente rechaçada. Era magricela, dentuça e usava óculos. E, diziam as más línguas, deixava-se “sarrar” pelos meninos no banco de trás do ônibus escolar. Dez anos depois encontrei a fulana na praia. Tinha se tornado um monumento, de causar afogamentos e quedas de ultra-leves. Não pude perdoar meu desdém infantil. Hoje passados outros vinte anos torço para encontrá-la novamente, re-enfeiada a contento.



Foi com medo de estragar as ternas lembranças de outrora que levei Cássia para conhecer Portland High School, a escola municipal que frequentei. Havia pasado por uma reforma geral mas mantinha seu estilo Bauhaus, isto é, continuava parecendo uma caixa de sapatos. As portas, que viviam abertas em 1985, agora estavam todas trancadas. Depois dos 11/9 só alunos, funcionários e visitantes autorizados podiam entrar. Miss Ponko nos recebeu à porta e fez um tour para mostrar as mudanças. No passado o nível das instalações já me surprendiam. Eu vinha de uma escola, também pública, no Brasil e o prédio - que de manhã era escola federal, à tarde estadual e à noite municipal – parecia saído do bombardeio de Dresden. Era um cortiço acadêmico. Só não tinha ratos e baratas porque os bichos temiam por sua integridade física num ambiente tão inóspito. Portland High por sua vez, era bem conservada, limpa, impecável.


Mais que a limpeza, impressionava pela aparelhagem. Fora os laboratórios completos de física, química e biologia, tinha também furadeiras, serras, tornos, elevadores hidráulicos, fornos industriais, o diabo. Por que tudo isso? Porque o ensino não se restringe à matemática, história e outras matérias que fazem parte de qualquer currículo. A escola oferece cursos profissionalizantes de marcenaria, metalurgia, mecânica automobilística, culinária e até as mais prosaicas administração do lar e corte e costura. Uma educação holística, verdadeiro ensino lato sensu. O colegial não prepara apenas para a faculdade, nem todo aluno tem aptidão, paciência ou mesmo vontade de perseguir uma formação universitária. Dão-se por satisfeitos com as profissões mais prosaicas, que dispensam ensino superior. Uma escola democrática tem que pensar neles também. Até porque, como diz o Jacó da piada, se todos entrarem na faculdade “quem vai ficar tomando conta do lojinha?”


Recentemente surgiram novos cursos, adaptados às modernidades: microeletrônica, tecnologia da informação, cuidado de bebês. Cuidar de bebês não é exatamente uma tarefa moderna, mas a julgar pela epidemia de gravidez adolescente que se espalhou pela América, faz-se necessário (ou talvez esteja até servindo de estímulo para a prenhez precoce...). Os equipamentos continuam sendo estado-da-arte. De primeira também é o novo auditório, uma sala com sonorização e iluminação profissional, acústica impecável e assentos confortabilíssimos como colo de avó.


Mesmo com todas as inovações, benfeitorias e upgrades, Miss Ponko estava melancólica, macambúzia. Falava dos seus pupilos com desesperança e resignação. Achava que muito foi investido não porque era necessário e sim para atender às vontades dos adolescentes cada vez mais mimados. “Se não colocarmos computadores, projetarmos filmes e fizermos atividades lúdicas, ninguém presta atenção nas aulas”, choramingou. Mais do que isso, lamentava a morte das vocações e dos ideais juvenis. “Hoje o aluno não sonha com uma profissão. Para escolher o futuro, querem saber que carreira paga mais”. Com jovens desses, não é de se espantar que Ponko nunca se interessou em procriar, ficando para Miss.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

In God We Trust

Ainda estava claro quando nos sentamos à mesa, na América janta-se com as galinhas. Arthur, o tio, pediu silêncio. Quando Arthur pede alguma coisa, sempre o faz num tom impaciente, como se estivesse repetindo pela enésima vez; uma vez atendido, seu obrigado vem acompanhado de um suspiro profundo e um sorriso esgarçado que diz “já não era sem tempo”. Silêncio feito, comandou uma prece.


No Brasil, não se reza mais às refeições. Se rezam, o fazem escondido das visitas. Não lembro de ter frequentado mais que duas ou três mesas onde se agradece à Deus pelo pão de cada dia. A impressão é que se tornou coisa do passado, démode. Nos EUA, por outro lado, os dois lares que visitamos eram ambos desavergonhadamente pios. O primeiro, vá lá, casa de missionários. Mas os Waldman são um casal laico, sem grandes aspirações religiosas. E não estão sozinhos: pesquisa recente constatou que 64% dos americanos agradecem ao Altíssimo pelo prato de comida, mesmo que feito pela Phyllis. 70% acreditam que o Paraíso existe e 73% crêem em milagres. Em contrapartida apenas 34% acreditam em extra-terrestres e 25% em astrologia. Deus ainda é pop.

Com o Senhor devidamente reverenciado, pudemos nos engajar em assuntos mundanos. Diante de entes queridos poderia tocar nos pontos sensíveis sem precisar pisar em ovos. Primeiro foi a guerra no Iraque. Arthur, representando o grande rebanho americano, a “maioria silenciosa”, já não concordava mais com a guerra, mas ostentava no carro um adesivo de apoio às tropas. “Queremos que nosso garotos façam um bom trabalho e voltem seguros para casa” repetia a cantilhena nacional. Os americanos vivem um dilema ético: o fim de Saddam Houssein satisfez sua necessidade íntima de fazer justiça e punir malfeitores, onde quer que estejam. Mas o pudor diante dos estragos da guerra os impede de usar sua avassaladora superioridade bélica e resolver o conflito de uma vez. Querem fazer o omelete sem quebrar muitos ovos. Não funciona. Como dizia o Duke de Wellington, grandes países não podem se dar o luxo de fazer pequenas guerras. O Vietnã não lhe deixa mentir.


Segundo assunto: aquecimento global. Arthur - um sujeito esclarecido, médico e ávido consumidor de notícias – acha que há um grande exagero na visão apocalíptica em voga. Crê na existência de lobbies que defendem interesses particulares, e não gerais. Ainda mais quando Al Gore, não só um político mas potencial candidato à presidência, empunha a bandeira. Há algo de podre no ar, e não é só o próprio...Se as mudanças climáticas lhes parecem exagero, ainda mais complicado é criticar sua fonte, a sociedade do consumo e do desperdício. A mente do americano funciona sob a lei dos mercado: se algo está escasseando na natureza vai aumentar de preço. Simples assim. Então por que se preocupar com as luzes acesas o dia inteiro e a água limpa jorrando impunemente das torneiras, se tudo custa pouco e nunca falta? Por que deixar de ter carros poderosos e beberrões, se eles são baratos, se a gasolina é barata, se até mendigos conseguem ter seu “possante”? O que atrapalha o americano é seu próprio sucesso, sua própria riqueza e convenhamos: difícil fazer auto-crítica um povo que, em dois séculos, passou de colônia para maior e mais abastada nação do planeta. A última geração que passou por dificuldades foi a da Grande Depressão, nos anos 30, e infelizmente não sobrou ninguém para alertar aos descendentes que o que vem fácil, vai fácil, mas a recíproca não é verdadeira.

Quanto à refeição, não sei se foi o vinho que enterneceu minhas papilas gustativas ou se foram os bandejões e quilos da vida que endureceram meu paladar. Só sei que o jantar estava honesto. Confesso que até cobiçei mais uma porção do filé de frango ao molho desconhecido, mas desisiti. Seguro morreu de velho. Para fechar com chave de ouro, Phyllis providenciou um vistoso bolo de chocolate. Orgulhosa contou ter procurado a tradução de "Welcome" e, em nossa homenagem, escreveu “Dar as Boas Vindas” sobre a cobertura de marshmallow. Quando cheguei lá em 1985, perto do meu aniversário, também fui recebido com um bolo, daquela vez inscrito “Feliz Data de Nascimento”. Na minha próxima visita aos Waldmans, já sei que presente vou levar.

quinta-feira, 26 de março de 2009

Mim, Tarzan

O almoço tardio era um anteparo contra a culinária maltratante de Phyllis, mas não escaparíamos do jantar. Isso nunca. Tratando-se de uma mãe judia, mesmo sem talento, seria uma desfeita sem tamanho. Chegando com o bucho cheio teríamos ao menos o álibi perfeito para fazer um prato frugal e evitar repetições.


Duas horas após deixar Mystic estácionávamos na garagem dos Waldman, que já aguardavam ansiosamente na sala de estar. A última vez que haviamos estado juntos foi oito anos antes. Junto deles estava Miss Ponko, minha professora predileta dos dias de Portland High School, que não via desde minha partida, em 1985. Predileta porque, de todos os mestres, era a única que via minhas idiossincrasias brasileiras com carinho e interesse. A professora de matemática, Mrs. Ford, tomou antipatia por mim quando na prova usei a fórmula de Bhaskara (não me olhe torto. Se você, leitor, concluiu o ensino médio, também aprendeu isso) para resolver equações de segundo grau, coisa que seus pupilos ainda não haviam aprendido. Achou que eu estava querendo aparecer. Mr. Santorini, teimava em me perguntar sobre touradas, mesmo eu sempre respondendo que no Brasil não há tal coisa. Ou estava mentindo, ou não ia nas arenas por ser um maricas, era o que seu sorriso dizia. Já o professor de educação física, Mr. Goodman, não pode conter a decepção ao perceber que eu não era a Grande Esperança Brasileira de sua equipe de futebol. Miss Ponko, ao contrário, fazia de tudo para que me sentisse integrado e estimulado. E foi com ela que produzi uma pérola do folclore estadunidense.


Era 1985 e não havia Internet. A juventude americana vivia o esplendor de sua ignorância. O Brasil era para eles um mistério completo e absoluto. Não faziam a menor idéia de onde era geograficamente, que língua falava e em que estágio civilizatório se encontrava. Perguntavam as coisas mais cândidas e idiotas. Tratavam como se fosse um lugar selvagem, onde macacos, girafas, ursos, leões e toda sorte de animal – inclusive os extintos – circulavam livremente por entre os transeuntes. Mais ou menos como nós imaginávamos (ou ainda imaginamos) a África. Eu costumava responder com invencionices, quanto maior mais os colegas se aglomeravam à minha volta, ávidos e fascinados pelos mitos tropicais. Num dia inspirado, logo após a aula de biologia, inventei uma tribo de índios que vivia na floresta amazônica, índios com três olhos - todos na cabeça, é bom notar. Miss Ponko estava por perto e confirmou a história, subestimando o potencial dos seus pupilos. Logo a fábula correu a escola e começaram a procurar a mestra para obter mais detalhes. Para evitar um estrago maior naquelas cabecinhas vacilantes, Miss Ponko achou por bem desmentir o causo. Enfrentou muita resistência por parte dos petizes.

terça-feira, 24 de março de 2009

Connectando


Enfim, Connecticut. O “Estado da Constituição”. Todo estado americano ganha um apelido, quer dizer, não é bem um apelido. Parece mais um sub-título, assim como fazem com os livros por aqui. Não basta só o nome, precisam de explicação para não deixar dúvidas: “Bíblia Sagrada: uma saga judaico-cristã”. Os sub-títulos dos estados constam nas placas dos automóveis. Nova York, por exemplo é o Estado Imperial (que serviu de inspiração para batizar seu edifício mais importante); Rhode Island é o Estado Oceânico, manobra de marketing turístico para atrair marujos e similares. Já a alcunha de Connectitut diz respeito à sua constituição, elaborada em 1638, considerado por alguns como a primeira da história mundial. Pioneirismo é coisa levada muito a sério nos EUA. Se o lugar foi o primeiro em alguma coisa, faz questão de divulgar, de preferência através de um grande outdoor na sua fronteira: “Bem vindo a Fimdomundoville, terra do primeiro aspirador de pó portátil”. Ah, vale lembrar que Connecticut, além da primeira constituição, produziu também o primeiro charuto, pente de cabelo, chapéu e palito de fósforo da América. Como se pode ver, a disputa pelo apelido oficial foi acirrada.

Com os cabelos ao vento e charuto apagado, entramos em Connecticut. Paramos em Mystic para almoçar e tomar uma cerveja decente. Na ida já havia flertado com a cidadezinha, por dois motivos: primeiro a ponte levadiça que passa sobre a entrada de seu pequeno porto. Pontes assim são feitos de engenharia irresistíveis, assim como elevadores panorâmicos e tobogãs. Quando começam a se abrir, evocam perseguições cinematográficas e despertam o Evil Knievel que existe em cada um.

O segundo motivo era seu próprio nome. Há pouco falei de Nova York, Texas, que pode ser um destino irrelevante, mas o nome faz de seus cidadãos novairoquinos legítimos – o que não é pouco. Mystic, por sua vez, afunda a cidade em brumas densas e permanentes, provoca desaparecimentos misteriosos e inocula seus habitantes com segredos indizíveis. Parece saída de um conto de Poe, ou de H.P. Lovecraft: “Anoiteceu. De repente, um grito terrível corta a escuridão . E das trevas surgia uma outra Mystic...”

Sinistro. Mas ainda estava claro e precisávamos almoçar. Diria até que o almoço era fundamental, já nos encaminhávamos para a casa dos Waldmans. Phyllis sempre foi acolhedora, hospitaleira, recebendo com toalhas limpas e cobertores felpudos. Mas o que saía de sua cozinha...valha-me São Lourenço! Aquela comida, se servida no exército arrasaria com a moral das tropas; num presídio, seria motivo de rebeliões. Quando ela fazia hambúrguer eu tentava dar escondido para o gato, mas ele recusava. Pegou até raiva de mim, o bichano. E o pior é que os hamburgueres eram sua piéce de resistance. Eles são um dos poucos pesadelos recorrentes que tenho.

Garçom! Uma Gansett, faixfavoire.

Antes de partir definitivamente de Rhode Island precisei satisfazer uma curiosidade. Tenho uma coleção de rótulos de cerveja, muitas que deixaram de ser fabricadas. Uma delas é a Narragansett, que fechou suas portas em 1981. No entanto a América vive um revival e cervejas andam ressucitando como Lázaros engarrafados, país afora. Inclusive a “Gansett” como é carinhosamente chamada.


Ela já foi a cerveja mais popular da Nova Inglaterra. Teve participação especial no filme Tubarão (era a marca que Quint, o caçador de tubarões, bebia). Diz a lenda que na sua fábrica os funcionários não só podiam beber durante o expediente como, quando flagrados com uma garrafa de refrigerante, recebiam automaticamente uma cerveja em troca. Quer dizer, motivos não faltavam para simpatizar com a marca. E, por uma incrível coincidência do destino, a cidade de Narragansett fica em frente à Newport, do outro lado da baía.


Com essa história comovente, convenci Cássia a desviarmos de nosso caminho e perder algumas horas. Eu tinha um dever, uma responsabilidade histórica e moral de ir até Narragansett, tomar uma Narragansett. Tudo bem que a história não era completamente verdade, a cerveja nunca deixou de ser produzida. Passou sim uma longa temporada sendo fabricada por outra empresa em outro lugar. Apenas detalhes, detalhes.


Chegamos em Narragansett debaixo de forte chuva e um frio cão. Parei num posto de gasolina e comprei uma garrafa do cobiçado suco de cevada. Fomos até o a praia onde o inclemente Atlântico Norte castigava com ondas as pedras e as muretas de proteção. A pequenina cidade parecia se esconder da tempestade furiosa. O vento uivava pelas frestas do carro. Coloquei a capa de chuva, saí com minha garrafa de Narragansett Lager. Ainda gelada. O vento era tão feroz que mal deu para ouvir o barulho do gás quando girei a tampa. Dei, enfim, o primeiro gole.

Que cervejinha de merda!



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sexta-feira, 20 de março de 2009

O teu cabelo não nega, mulata

“Terra de contrastes” é um termo que cabe em qualquer país e nos Estados Unidos não é diferente. Num lado existe o moralismo quase medieval, capaz de caçar bruxas e queimar livros; no outro uma indústria pornográfica pujante e, porque não dizer, latejante. A cultura do descartável, que bebe tudo em copos plásticos e joga fora televisores que ainda funcionam convive com porões são abarrotados de velharias e coleções das mais inusitadas. Numa mesma esquina, comendo um prosaico cachoro-quente podemos encontrar um prêmio Nobel e uma besta incapaz de identificar o próprio país no mapa mundi. E no meio dos politicamente corretos escondem-se sujeitos como Don Imus.

Don Imus é um canalha com firma reconhecida e lavrado em cartório. Exercita a canalhice diariamente em seu programa de rádio e TV, intitulado Imus Pela Manhã. Sendo os EUA uma democracia, todos - homossexuais, pretos, judeus, gordos, carecas ou qualquer outra categoria, seja ela tradicional vítimas de preconceitos ou não - recebem sua cota de impropérios matinais.
É popularíssimo. Os ouvintes se deliciam quando os comentários preconceituosos e mal-educados de Imus são desferidos nos outros, seja por conta de sua cor, religião, cidade natal ou tamanho do nariz. Mas dada à amplitude de sua língua ferina, eventualmente são eles próprios vítimas do canalha. Então trocam o riso cruel pela indignação. E assim o programa se sustenta, do sado-masoquismo auditivo da platéia.


Por aqueles dias houve uma final de basquete feminino, entre as universidades de Rutgers e Tennessee. Na América os esportes universitários recebem um tratamento – perdão o trocadilho – profissional , não só pela afinidade que as pessoas têm com as escolas, mas principalmente porque eles são a porta de acesso para as ligas profissionais. A peleja em questão não teve nada de excepcional, sem cesta no último segundo nem enterradas espetaculares. O que fez dele interessante foram os comentários de Imus e seus asseclas.


Para Imus a graça estava, obviamente, nas derrotadas: “E olha que são garotas da pesada, têm tatuagens e tal” – comentou. Até aí nenhum absurdo: enquanto a maioria das moças se decoram com orquídeas, beija-flores e anjinhosas jogadoras de Rutgers ostentavam verdadeiras pintura de guerra. “São hoes barra-pesada!” disse um outro comentarista. Aí é que começou o imbroglio. Hoe é uma gíria usada pelos cantores de rap para designar as mulheres. É diminutivo de whore, que significa prostituta. Algo parecido com o cachorra usado pelos funkeiros do Brasil. De uma simpatia sem limite. Assim como o termo nigger, é usado sem contrangimento pelos pretos, mas quando saídos da boca de um branco, torna-se uma ofensa descomunal. O caldo entornou de vez quando Imus, já com a verve descontrolada, vaticinou “São hoes de cabelo pixaim”. E completou: "Olha que as meninas do Tennessee são até bonitnhas...”.


A coisa se alastrou como fogo de palha. Os mais inflamados queriam chupar-lhe a carótida. O Reverendo Al Sharpton, profissional da encrenca, mobilizou manifestantes que saíram às ruas com cartazes e palavras de ordem. A turma do deixa-disso tentava apaziguar os ânimos dizendo tratar-se de apenas mais uma das estripulias politicamente incorretas de Imus. Este ainda foi a público se desculpar, meio que a contragosto. Em vão, os ofendidos ganaharam a parada e Imus perdeu seu programa. O curioso é que nada aconteceu com seu colega, aquele que primeiro chamou as moças de cachorras. Ficou a impressão que foi o comentário sobre o pixaim que nocauteou Imus. Pior que o racismo, é o preconceito estético-capilar.

Pocket Renoir

Inebriado pelos eflúvios de grandeza dos robber barons, paramos numa loja especializada em casas de boneca. Não eram brinquedos e sim réplicas das mansões da Bellevue e de outras grandes residências, nos mais variados estilos de arquitetura. À venda também os móveis , apetrechos e utensílios que gurnecem essas casas, tudo em tamanho diminuto. A preocupação com o detalhamento beira o patológico tamanha obsessão com a fidelidade ao mundo real. O que se imaginar eles têm. Se não tiverem, se comprometem em fabricar, mesmo que seja uma nano-escova de cabelo da era vitoriana ou o cãozinho de alguma dondoca de outrora, esse sim um legítimo poodle toy. A dona da loja estava especialmente entusiasmada naquele dia pois conseguira um artista capaz de miniaturizar as telas dos grandes mestres para decorar as paredes das casinholas mais abastadas. Have the holy patience!

Monsieur, s'il vous plait

Lembro de ter dito que os magnatas de outrora veraneavam em Newport, só que não entrei em detalhes. Então, aos detalhes!

No final do século XIX os Estados Unidos viviam os Anos Dourados, período em que os barões da indústria - nomes como Rockfeller, Vanderbilt, Carnegie, Melon - ganharam contornos míticos, graças ao poder e às fortunas indecentes que amealharam explorando petróleo, mineração, estradas de ferro e afins.

Ostentar era a palavra de ordem. Eles, os ricaços, elegeram Newport, para um disputa informal de quem construia a mansão mais nababesca. Mais especificamente a Avenida Bellevue, do outro lado da península, voltada para o mar aberto. Os Berwind apresentaram uma singela cópia do Chatêau d’Asnieres; os Oelrichs se inspiraram no Grand Trianon de Versailles; William Vanderbilt gastou quinze mil metros cúbicos de mármore para revestir o palacete que serviu de presente para a patrôa no seu (dela) 39° aniversário. O troféu foi para seu irmão Cornellius, com um palazzo renascentista, com nome de conjunto de R&B: The Breakers.Palmas Para Cornellius!

Algumas das mansões podem ser alugadas como locação para filmes e fotos, casamentos de popstars, festas de arromba e outros eventos perdulários, mantendo a tradição de exibicionismo e exagero do local. A maioria, no entanto, fatura oferecendo ao grande público tours guiados.Fomos conhecer os Breakers que, diga-se de passagem, cobra uma tarifa desavergonhada pelo passeio. Você acha que Cornellius, capitalista dos quatro costados, iria perder a chance de nos explorar? Nem morto!

O grupo do qual fizemos parte era composto de um punhado de ameircanos, um trio de chineses e uma família de franceses, facilmente identificáveis por serem os únicos (além de nós, que fique registrado) com as calças abaixo do umbigo. E também porque falavam francês.
A casa era realmente impressionante, mas ao contrário dos museus, não podíamos degustá-la no nosso ritmo, tinhamos que nos manter no rebanho. Passei então a prestar atenção nas pessoas do grupo. Os chineses, por exemplo, se transformaram nos chatos do passeio. A cada mudança de aposento ficavam para trás e quando presentes conversavam em voz alta. Deviam estar confabulando sobre quais objetos iriam copiar em larga escala para a venda nos camelôs de todo planeta. Os franceses, por sua vez, me fascinaram. Era uma família de seis – pai, mãe e quatro filhos. Silenciosos, atentos às explicações da guia e obedientes às regras, mesmo os dois filhos menores, crianças ainda em fase de algazarra. Mais do que o comportamento, admirava a fleuma inabalável com que ouviam a cicerone falar das obras de arte ou de móveis francêses. Ninguém da família se entreolhava, nenhum sorriso cúmplice, impassíveis. Nós, se ouvissemos o nome do Brasil - mesmo que fosse para falar de alguma doença tropical que houvesse matado um Vanderbilt com terrível sofrimento - encheríamos o peito e passaríamos o resto do tour com um sorriso orgulhoso estampado no semblante.

O passeio terminava com a visita – esta, sem controle de tempo – aos majestosos jardins do palacete onde os visitantes podiam, enfim, dar vazão ao seus ímpetos fotográficos, já que eles são proibidos no interior da mansão. Para a inevitável foto com a patrôa, não resisti à vontade de me aproximar e recorri à família gaulesa com a máquina e meu simplório francês. Queria que eles soubessem que eu era um brasileiro francófilo e aculturado. Latino americano porém limpinho. Ademais, sabemos que os franceses retribuem abordagens em inglês com suas proverbiais bufadas. O solícito patriarca, no entanto, me respondeu em inglês cristalino. Continuei pedindo em francês e ele aceitando em inglês. Não sei se era respeito por estar num país anglófono. Mais provável que fosse para me poupar do ridículo de expor minha fluência macarrônica na sua língua. Ah, como são gentis, os franceses.

As roupas e as armas de George



No segundo dia, conformados com nosso destino, fomos passear de carro e conhecer as mansões que margeiam seu extenso e recortado litoral. Enquanto degustávamos o momento People and Arts, vislumbramos uma torre gótica que se destacava no horizonte, imponente no topo de um morro. Não poderia ser um castelo medieval, mas nada impedia que fosse um mosteiro ou coisa que o valha. História - ou pelo menos uma boa história – salvaria o dia.

A tal torre era de uma capela episcopal, que por sua vez pertence à uma escola particular. St. George é um colégio interno para os ricos e famosos, do tipo em que os alunos usam paletó e gravata. O ensino até que é esmerado, as turmas são de no máximo 12 alunos (portanto, nada de turma do fundão!) e as aulas são ministradas usando o método Harkness, que estimula as discussões entre alunos e professores. Mas a escola é famosa pelo sítio onde está instalada: 123 acres de gramado impecavelmente verde com vista para três praias e praticamente toda a baía de Sachuest. Pela bagatela de quarenta mil dólares anuais você pode mandar seu pimpolho para lá.

Entramos na escola sem nenhuma identificação. Era dia de jogo, muitos pais estavam nas torcidas, facilitando nossa invasão. Os alunos estavam espalhados por todo campus, engajados em diferentes esportes. Nas aulas de educação física da minha infância jogávamos apenas futebol, basquete, vôlei. O mais próximo que chegávamos do atletismo era brincando de pique, no recreio. Em St. Georges a petizada joga beisebol, hóquei, lança dardo, martelo, salto em altura - com e sem vara! -, correm com obstáculos e o que mais puder gerar medalhas olímpicas algum dia.

A atração do dia eram as partidas intercolegiais de lacrosse, um esporte que lembra o handebol, mas que a bola, pequena, é lançada por meio de um bastão com uma rede na ponta. Muito popular por conta do alto grau de truculência, bastante contato físico e inevitáveis raquetadas desferidas na cabeça do adversário. Para os americanos, quanto mais romano o esporte, melhor. Eram dois jogos simultâneos, o da equipe varsity – com o supra sumo dos atletas – e junior varsity, onde jogam os novatos e escondem-se os cabeças de bagre. Assistimos um pouco do jogo da primeira divisão, mais viril. O problema era o vento, que fustigava nossas cabeças, inclemente. Cássia implorava para que voltássemos para o carro. Só quando uma raquetada abriu o supercílio de um moleque, saciei minha sede de sangue e topei ir embora.

Antes de partir, visitamos a tal capela com ares de catedral. O tamanho interno e a austeridade decepcionaram ante a suntuosidade do seu exterior. Para quem está acostumado com a riqueza dos adereços nas igrejas católicas, as protestantes parecem tribunal de juri. Nas paredes de pedras, estavam inscritos os nomes dos mestres passados e dos que fizeram generosas contribuições. Os que, como dizia Led Zepellin, compraram sua Stairway to Heaven. E, sobre a pesada porta de madeira, uma frase sintetizava o ethos americano: Ora et Labora.

Navegar é preciso

Com 3 dias na mão, não podíamos ir muito longe. Pensamos em visitar Nantucket, Cape Cod ou Martha’s Vineyard, onde a aristocracia americana ancora seus iates e passa as férias, decidindo o destino do mundo entre um scotch e outro. Acabamos em Newport, Rhode Island, mais próximo de Portland e também porto da elite em veraneio.

Eu já havio estado em Newport, levado pelos meus dios. Naquele verão de 1985 a cidade fervilhava com os barcos, salpicando de branco a imensa baía de Narragansett. Embarcações de fino trato misturavam-se com as esportivas (Newport tem larga tradição náutica, hospedou por décadas a America’s Cup). Lembro-me especialmente de uma loja especializada em bandeiras, onde comprei uma pequena, de Connecticut. Que nem era a mais bonita. Fui um adolescente puxa-saco, confesso.

Agora, de volta, tudo estava diferente. Diz o poeta que nunca entramos duas vezes no mesmo rio. Talvez fosse a época do ano, talvez fosse eu mais impressionável quando guri, só sei que não pude conter minha decepção neste retorno à Newport. Um deserto. A mais pura síntese da expressão “baixa-temporada”. Barcos ancorados, velas recolhidas e cobertos por lonas, como móveis numa casa fechada. O céu acinzentado, a baía vazia ao fundo e o sossego sepulcral, compunham uma cena melancólica, digna das tintas de Edward Hopper. Certas cidades têm alma, que emana de suas ruas, edifícios ou da natureza ao redor. Outras só têm vida com gente dentro. Newport é do segundo tipo, uma fantaisa de marinheiro esperando o folião.

Contagiados pelo clima anestésico, andávamos a esmo pela cidade, com olhar bovino e distante. Haviam alguns outros turistas, que reencontrávamos nos pontos turístico inevitáveis. Depois de um tempo já nos cumprimentávamos com triste cumplicidade. Um breve meneio de cabeça com um sorriso amarelo que dizia “que merda, não?”.

Isto é, quando havia alguém para cumprimentar. No Fort Adams, por exemplo, não havia uma única viv’alma. Ninguém. Apesar de desativada, é a maior fortificação da costa americana e nós entramos e saímos sem ser incomodados. Para aqueles que pretendem invadir os Estados Unidos sem encontrar resistência, e precisam de um lugar para se aquartelar, fica aí uma dica: Fort Adams.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Portland? Do que?

Portland era a próxima parada. Portland, Connecticut. É preciso ser específico já que a Portland mais famosa fica no Oregon, do outro lado do país. E além destas duas ainda existem outras onze. Treze Portlands! Os imigrantes realmente não acreditavam que aquelas colônias iriam fazer todas parte de um único país. Batizavam as cidades sem se preocupar com o que se fazia na vizinhança. Surgiram então Pleasantvilles por todos os lados, Glendales aos borbotões e Riversides brotaram à beira dos rios como mato. A campeã é Springfield, com 25 exemplares (Por isso os autores d’Os Simpsons elegeram-na como cidade natal de Homer e família. Como pode ser em qualquer lugar, ninguém se sente ofendido - ou orgulhoso - pela conterraneidade).

Ninguém escapa. Phildelphia, que eu imaginava uma só, são dez. Também são dez as Bostons. Em geral os nomes são homenagem à terra natal, deixada no Velho Continente: York, Hampshire, Oxford, Cambridge. Alguns casos são de admiração por cidades prósperas, como Paris, Illinois, ou mesmo um desejo de exotismo tropical, como Brazil, Indiana. Outros nomes se repetem por que são funcionais, como Portland. A Terra do Porto, simples assim. No Brasil os portos são alegres, velhos, felizes e seguros. Lá são só portos.

Em certos casos a homonimía é o maior patrimônio da cidade. Que os digam os vinte habitantes da pequenina Nova York, Texas. Novaiorquinos puros, legítimos!

Mas era de Portland que eu falava. Aquela de Connecticut me interessava em especial porque vivi lá nos meus tenros quinze anos, numa espécie de intercâmbio intra-familiar. Morei por seis meses na casa d’uns primos de terceiro, quarto grau. Na época, um dos três filhos do casal, Stuart, ainda morava em casa. Hoje só os pais continuam na cidade. A filharada se espalhou pelo país e em breve a netalhada fará o mesmo. Os americanos são um povo com bicho-carpinteiro. Não sossegam o facho. Terminam o segundo grau e vão fazer faculdade longe de casa; formam-se e arrumam emprego n’outra cidade; aposentam-se, vendem a casa, compram um trailer e finalmente deixam de ter residência fixa.

Meus tios (prefiro chamar assim, primo mais velho é tio) não venderam a casa nem compraram um trailler, o que não significa que fiquem em casa quietinhos, assistindo TV e aguardando telefonema dos filhos. Vivem para cima e para baixo, indo a concertos de música, visitando parques nacionais ou simplesmente conhecendo novas cidades. Ao contrário dos velhos brasileiros que só saem do quartinho dos fundos em datas especiais, junto com o faqueiro de prata, e os albuns de fotografia, os americanos têm uma agenda atribuladíssima. Tanto que nos 3 dias que se seguiram à nossa partida de White Plains, os Waldmans (nome dos primos/tios) não poderiam nos receber por conta dos seus compromissos sócio-culturais.

Primeira Emenda

É óbvio que não resistimos. Numa tarde pegamos o trem e fomos até Nova York. Chegar tão perto e não ir seria despeito. E em algum momento, quando estivéssemos no meio do nada, ia bater um certo arrependimento.

Era domingo de Páscoa e a cidade estava abarrotada. Tinha gente escorrendo pelas paredes. Nas esquinas pequenas multidões se formavam, como se houvesse algum acidente ou pessoa atropelada, mas eram apenas pedestres esperando o sinal fechar. E brasileiros, muitos brasileiros.

Nas lojas as pessoas saíam pelo ladrão e o ladrão, se quisesse, nem conseguiria entrar. Uma das poucas tranquilas era uma tabacaria, Nat Sherman, na 5ª Avenida. Lá dentro os atendentes, todos num azedume de deixar francês no chinelo, destratavam clientes e reclamavam da música que vinha do andar de cima. Parecia que eles haviam pego o pianista da loja para cristo. A música era daquelas que tocam nos saloons dos filmes de faroeste. Tirando uns e outros deslizes, estava até divertido e o estilo estava bem de acordo com o estilo da decoração interior da loja.
O sujeito acima não parava de tocar e eles, abaixo, não paravam de fazer comentários depreciativos em alto e bom som. Eis que o pianista para, desce e vai embora, para o regozijo dos funcionários. Não resisti e segui o homem, que parou na esquina para ser consolado por uma mulher.

- “O senhor trabalha na loja?” Perguntei, preocupado
- “Não.”
- “É um cliente assíduo?”
- “Não. Entrei para dar uma olhada, vi o piano e sentei para tocar. Até a hora que não aguentei mais ser ofendido.” – explicou, com a voz embargada.
Estavam todos – os vendedores e o tocador de piano - de acordo com a Primeira Emenda, aquela que garante liberdade de expressão. E fazendo jus ao ditado “quem toca o que quer, escuta o que não quer.”
- “Eu estava gostando. O senhor toca bem.” Tentei consolá-lo

Ele, com o rosto iluminado agradeceu como se eu fosse a platéia do Carnegie Hall.

A Fênix

Ei-la que ressurge das cinzas. A viagem , digo. Espero que seja do agrado de vosmicês.